No papel, minha experiência no Ph.D. foi quase perfeita. Demorei 7 anos, mas tive um filho, mudei de cidade no meio da pandemia, e finalizei o programa com nota máxima, mantive uma boa relação com os meus professores e orientadores. Porém, quem viveu (e sofreu) essa experiência de perto comigo, sabe das crises e das dificuldades que eu enfrentei.
Parte de mim ainda está se recuperando dos traumas do doutorado. Sem dúvida houve momentos felizes e oportunidades maravilhosas de troca, aprendizagem e colaboração, mas o desgaste emocional e físico parecem pesar mais na balança do que o título de doutora.
Se eu pudesse voltar no tempo, eu faria tudo de novo? Provavelmente não sem antes considerar essas três questões.
1. Eu preciso mesmo de um doutorado?
Quando decidi entrar no doutorado eu já tinha um mestrado e era professora adjunta de Português na Universidade da Carolina do Norte. Como professora adjunta de uma universidade americana eu não tinha direitos a benefícios, e ouvia dos meus colegas que para ser "assistant professor" ou "tenured professor," com direito a benefícios e melhores salários, eu precisava de um Ph.D.
Porém, cada vez mais há menos vagas que oferecem "tenure track" em universidades nos EUA. E para todas elas, há um montão de Ph.Ds já formados, ou prontos para se formar, concorrendo à mesma vaga, fazendo com que eu seja apenas mais uma entre centenas de candidatos tão ou mais qualificados, e com mais vontade de seguir essa carreira, do que eu. Quando eu era uma professora adjunta, o tão sonhado "tenure track" era a razão primeira de ingressar no doutorado. Durante o Ph.D., no entanto, eu vi o quanto meus professores e colegas viviam em função do trabalho. Minhas prioridades profissionais jamais se alinhariam, em tamanho e intensidade, com a deles, e isso foi ficando mais claro à medida em que o doutorado avançava. Ou seja, minha primeira razão de começar o programa já não fazia sentido pra mim. Se houvesse outras razões além daquela, talvez minha experiência tivesse sido mais gratificante.
Portanto, se você tem apenas um motivo para justificar o início dessa jornada, tente encontrar outros que sejam tão ou mais importantes e capazes de manter sua determinação para concluir o programa. Busque razões que ampliem seu leque de possibilidades profissionais. Isso poderá ajudar a tomar decisões mais conscientes durante o Ph.D, como por exemplo, incluir na sua grade cursos aulas voltadas também à tecnologia da educação, ou análise de dados, linguagens de programação, essas coisas que abrirão portas para carreiras de sucesso dentro e fora da academia.
2. Eu quero dedicar longas horas e anos da minha vida lendo, escrevendo, revisando, reescrevendo, e me comunicando em um idioma e uma cultura que não são naturais para mim?
Se você está considerando a possibilidade de um doutorado fora, é porque muito provavelmente você é uma pessoa que gosta de estudar, que escreve bem e sabe compreender e comunicar conceitos abstratos com facilidade e clareza. Você provavelmente está acostumado/a/e a receber elogios e críticas positivas em suas produções intelectuais. Em outra língua, porém, todos esses atributos serão desafiados.
Um Ph.D. já é uma tarefa hercúlea na nossa própria língua. Em inglês, a coisa se torna ainda mais complicada. Navegar os códigos culturais e as burocracias acadêmicas no exterior demanda mais tempo e, quase sempre, resulta em mais frustração. Por exemplo: embora muitas universidades aqui ofereçam mais estrutura e melhores oportunidades educacionais do que no Brasil, a maioria das (poucas) instituições que financiam pesquisa aqui não permite que doutorandos internacionais sequer concorram àquela bolsa.
Ao mesmo tempo em que somos apreciados como portadores de uma diversidade intelectual, cultural, e lingüística, somos avaliados de acordo com nossa capacidade de desaprender vícios de escrita (por exemplo, voz passiva) e até mesmo de comportamento. Embora exista um discurso de equidade, inclusão e diversidade, no fim as instituições nos julgam mais ou menos aptos de acordo com nossa habilidade de nos moldarmos ao formato americano de práticas acadêmicas.
No Brasil vão dizer que estamos americanizados. Este é um processo de deslocamento de personalidade doloroso, que demanda uma paciência enorme. Criar uma versão de nós mesmos que seja adequada para os moldes americanos significa abandonar muitos aspectos e comportamentos que, até então, nos definiam como pessoa. Ou seja, o mesmo processo que vai garantir o seu sucesso e sobrevivência no meio acadêmico aqui, vai também te minar por dentro (e consequentemente, por fora). Um PhD aqui precisa ser acompanhado de muita terapia.
3. Estou ciente de que vou viver com a auto-estima abalada e um salário baixo e que, mesmo depois do doutorado, empregos não oferecerão recompensas proporcionais ao meu nível de especialização?
O mundo é um moinho, e a realidade acadêmica americana é um moedor. Ao considerar fazer um doutorado aqui, busque programas que ofereçam bolsa de, no mínimo, cinco anos. E que a bolsa seja paga mensalmente, 12 meses ao ano. Parece óbvio, mas por incrível que pareça, muitas universidades pagam a bolsa somente durante 9 meses do ano, o que exclui o verão (junho, julho, e agosto), pois essa é a época em que os doutorandos viajam para fazer a pesquisa de campo.
Tais instituições acreditam que é dever dos alunos buscar financiamento externo para viagens de pesquisa (travel grants/research grants). Para concorrer a essas bolsas (cujos valores muitas vezes não cobrem nem a passagem ao Brasil, quanto menos outras despesas como alimentação e estadia), você precisa convencer um comitê que não entende nada de sua área ou métodos de pesquisa de que você é foda, que seu trabalho é relevante, e que a metodologia é a melhor de todas, e que o seu orçamento faz todo o sentido.
Ou seja, além de ler aproximadamente 600 páginas por semana ou mais (sem exagero), escrever trabalhos, preparar aulas e apresentações, corrigir as provas e os textos dos alunos da graduação, você ainda vai ter que encontrar tempo e energia para elaborar um projeto de pesquisa impecável. Mesmo assim, sua proposta, muito provavelmente, resultará em uma negativa. Se seu projeto for aceito você vai ganhar mais prestígio do que dinheiro, pois essas bolsas geralmente são insuficientes pra te sustentar durante os três meses em que você não estará recebendo da Universidade.
Então fuja das instituições que só pagam por 9 meses ou que garantem apenas 2 ou 3 anos de bolsa. Muitas universidades prometem possibilidades de continuidade de bolsa se você for T.A. (teaching assistant) ou R.A. (research assistant). Mas pense. Não só você, como todo mundo no seu programa vai depender dessas vagas possibilidades. Aqueles que deveriam ser seus colegas, serão também seus concorrentes. É natural ter gente rancorosa nesses tipos de programa, porque o aluno tal sempre consegue a vaga de T.A., e o outro não. Amigues, não caiam nessa!
E quando o programa finalmente termina e você, com sorte, consegue um super trabalho, um "tenure track" ou um pós doutorado numa Harvard, Stanford, Princeton, ou Yale! Wow. Ganhou na loteria! Só que não, pois o salário não é aquelas coisas considerando o alto custo de vida das cidades onde essas universidades estão, sem falar no volume intenso de trabalho que envolve ensino, pesquisa, produção intelectual escrita, fora os serviços administrativos.
Enfim, eu me pergunto:
Valeu a pena ter sacrificado sete anos e comprometido minha sanidade física e mental para um projeto que gera mais sacrifícios que recompensas? Para mim, pelo menos até agora, não.
Portanto, antes de considerar um doutorado nos EUA, reflita sobre essas e outras questões. Entre em contato com professores e alunos de programas aqui e no Brasil. E lembre-se: nenhuma experiência é igual a outra. A sua pode ser melhor. E provavelmente será, se você souber fazer escolhas mais bem informadas do que as que eu fiz na minha trajetória.
No site da BRAHUS tem uma lista de doutorandos e doutores atuantes nos EUA. Essa é uma associação criada para apoiar brasileiros que estejam aqui ou considerando iniciar um programa em história. Mas mesmo se sua área não for de História, entra em contato com a gente! Sempre tem alguém que conhece alguém... enfim, ficaremos felizes em ajudar.